A
gente fala mal do caráter do brasileiro, mas a verdade é que poucos povos têm
um caráter forte e bom como o nosso. É tão fácil roubar no Brasil, são raras as
tentações e tão poucas as probabilidades de castigo que só um caráter incomum
explica a honestidade de quem não rouba. É fácil ser honesto onde, por exemplo,
as leis contra a corrupção são aplicadas com rigor. As pessoas não têm a
oportunidade de testar seu caráter, como nós. Morrem sem saber se são honestas
mesmo ou só temem a punição. Aqui você pode escolher se quer ser virtuoso ou
não. É uma escolha difícil, pois nada a determina, nada a influencia. Sua
escolha não afetará nada salvo o seu próprio autoconceito. Não mudará o seu
prestígio e o seu status - a não ser, claro, que a decisão de ser honesto
signifique um abalo nas suas finanças, quando então você certamente sentirá uma
certa reprovação social. Aqui as leis contra a corrupção, de tão pouco
invocadas, são esquecidas. Tanto que o Governo acaba de propor, como novidade,
leis anticorrupção que já existiam e nem ele sabia. Além de repetitivas, as
novas leis redimem os antigos corruptos, que podem dizer que o que eles faziam
só agora é pecado. Antes podia.
Só
a honestidade obsessiva explicava o fato de todo mundo não roubar da
Previdência, já que recém estão descobrindo como controlar suas contas e
prevenir suas fraudes. Que notável recato, que santidade brasileira sustava a
mão de quem não acrescentava um zero à quantia a pagar e ficava com a
diferença, mesmo sabendo que não seria descoberto e se fosse não arriscaria
nada! Agora critica-se injustamente o uso político de recursos da LBA. São
tantos os recursos e de tal natureza - comida, agasalho, coisas básicas para o
voto agradecido - que colocá-los à disposição de qualquer mortal para usar a
sua discrição com equanimidade e lisura equivale a um desafio desigual ao
caráter, a uma covardia. Mesmo para um mortal brasileiro. E, no entanto, alguns
(não muitos, é verdade) fizeram justamente isto, mesmo que a tradição
justificasse o contrário.
Grande
caráter, o do brasileiro. Caráter voluntário, caráter espontâneo, caráter por
conta própria. O Brasil é uma provação pela qual a maioria dos seus filhos
passa sem sucumbir, mesmo vivendo neste ambiente. Se a honestidade ainda desse
algum por fora, mas não dá.
No
Brasil o caráter é a sua própria recompensa. Quer dizer, ainda por cima mal
pago.
Publicado no Jornal Zero Hora
Edição de 29 de agosto de 1991.