Deus é pai,
dizem, e finalmente o Luther chegou lá também. Meu pastor alemão nascido na
Tinga beira a terceira idade, na tabela canina, e mais um pouco passava pelo
mundo sem conhecer a graça de uma bimbada e sem deixar prole. Nunca lhe faltou boa pinta, ao
contrário, e muito menos apetite para a função, mas foram raras as oportunidades em que pôde apresentar seus dotes. Ao dono, confesso, talvez aborrecesse
batalhar para o cão o que para si próprio já era escasso. Enfim, algumas
chances teve, às vezes mais para o lado da chanchada que do romantismo.
A primeira
desastrada tentativa deu-se com uma vizinha balzaca, de raça indefinida, e certamente passada do momento propício, pelo mau
humor pré-menstrual com que confinou o jovem pretendente ao fundo do pátio e
declarou-se exclusiva proprietária da água e da comida. Bastaram dois dias
para que se abortasse a operação e alguns anos para tentar novamente um acasalamento sem traumas.
A segunda
noiva era em tudo o oposto, meiga, amorosa, generosa com o assédio incansável
do cusco, este já alucinando em sua carência de sexo. Ao longo de dois cios, estiveram juntos por mais de
vinte dias como um perfeito par de apaixonados, buscando a cópula em todos os
recônditos e degraus do pátio. E nada feito. Como parecia ser uma
pontaria descalibrada do Luther o que melava o coito e, literalmente, o pátio
todo, os donos de ambos, inconformados, partimos para a inseminação artificial em uma clínica especializada. Nada feito também e,
soubemos depois, foi melhor assim. Aparentemente, a moça tinha lá bem apertados seus pudores, e se por um acaso a
inseminação houvesse vingado, veja só, teria de passar por uma cesariana.
Já estava
então me conformando com o destino tragicamente virgem do preto velho quando
uma nova candidata apareceu. Chegou num final de tarde, sem muita conversa, sem
parecer muito efusiva, embora receptiva ao amor. Nem prestei muita atenção na atividade noturna do pátio, mais preocupado estava com um
dedo inchando que ainda me levaria ao pronto-socorro, tinha me metido a apartar
uma rusga dos dois na hora de servir a comida. Foi-se embora no outro dia, não
sem antes levar de lembrança um pedaço do supercílio do Luther, que não lhe fez falta, curou
rapidamente tal como o meu dedo. Dois meses depois, a notícia: oito filhotes,
alguns são a cara do pai, me informam. A cara que, só agora percebo, anda com
um lampejo novo de tranquila felicidade, mesmo quando esquece a língua
pendurada feito gravata frouxa e desvia o olhar, um tanto constrangido de
admitir que, a quem morder e de quem parir, são sempre e somente elas que
decidem.
Nei
Lisboa
(Publicado
originalmente no Segundo Caderno de Zero Hora, novembro de 2004,
e no livro "É
Foch!", L&PM, 2007)