(...) A utilização da cocaína associada à
morfina, ou como alternativa a esta, não se limitava exclusivamente à América.
Sir Arthur Conan Doyle era um reconhecido usuário de cocaína, como seu famoso
detetive, que utilizava tanto a cocaína quanto a morfina. Uma ampla comparação
entre o interesse de Holmes e o de Freud pela cocaína é apresentada em ”Sherlock
Holmes e Sigmund Freud”, de David Musto. A obsessão de Holmes pela droga é
vivamente descrita por Watson nos parágrafos iniciais de O Signo dos Quatro (1888):
Sherlock Holmes pegou o
frasco sobre a lareira e a seringa hipodérmica no elegante estojo de pelica.
Com seus longos, brancos e nervosos dedos, ajustou a delicada agulha e enrolou
o punho esquerdo da camisa. Por um breve tempo, seus olhos se fixaram
pensativos no antebraço e no pulso vigorosos, inteiramente marcados por
inúmeras picadas. Por fim, introduziu até o fundo a ponta fina, pressionou o
pequeno êmbolo e, com um longo suspiro de satisfação, deixou-se cair de novo na
poltrona forrada de veludo.
Havia muitos meses que
eu testemunhava essa cena três vezes ao dia, mas o hábito não me resignara a
ela. Pelo contrário, sua visão me irritava cada dia mais, e todas as noites a
consciência me pesava, ao pensar que havia perdido a coragem para protestar.
Repetidas vezes gravara na memória a promessa solene de abrir minha alma a
respeito do assunto, mas no ar frio e displicente de meu companheiro havia algo
que o tornava o último homem com quem se teria vontade de tomar qualquer
atitude que se assemelhasse a uma liberdade. Sua grande capacidade, sua conduta
irrepreensível e a prova que eu tivera de suas muitas qualidades
extraordinárias tornavam-me tímido e relutante em contrariá-lo.
Naquela tarde, contudo,
fosse pelo Beaune que eu tomara no almoço ou pela exasperação adicional
produzida pela extrema determinação de seu procedimento, senti de repente que
não mais poderia calar.
̶ O que é hoje, morfina
ou cocaína? ̶ perguntei.
Ele ergueu
languidamente os olhos do velho volume de couro negro que havia aberto.
̶ É cocaína, ̶ disse
̶ uma solução de sete por cento. Gostaria de experimentar?
̶ Não, de modo
algum, ̶ respondi bruscamente ̶ Minha constituição ainda não se refez da
campanha afegã. Não posso me permitir submetê-la a um esforço adicional.
Ele sorriu da minha
veemência. ̶ Talvez você tenha razão, Watson, ̶ disse. ̶ Creio que ela tenha
uma influência fisicamente negativa. No entanto, acho-a tão transcendentalmente
estimulante e clarificadora para a mente, que o seu efeito secundário é uma
questão de pequena importância.
̶ Mas considere! ̶ eu disse gravemente. ̶ Pense no custo! Talvez, como você diz, seu
cérebro esteja desperto e excitado, mas é um processo patológico e mórbido, que
envolve crescente alteração dos tecidos e pode acabar levando a uma debilidade
permanente. Pense na reação sinistra que toma conta de você. Seguramente não
vale a pena. Por que deveria, por um simples prazer passageiro, por em risco
toda essa capacidade de que foi dotado? Lembre-se de que falo não apenas como
um camarada ao outro, mas como um médico a alguém por cuja constituição ele é
até certo ponto responsável.
Ele não pareceu
ofendido. Ao contrário, juntou as pontas dos dedos e apoiou o cotovelo nos
braços da poltrona, como quem aprecia a conversa.
̶ Minha mente ̶ disse
̶ se rebela contra a estagnação. Dê-me problemas, dê-me trabalho, dê-me
o mais enigmático criptograma ou a mais intrincada análise, e eu estou no meu
próprio ambiente. Posso então dispensar estimulantes artificiais. Mas detesto a
rotina monótona da existência. Anseio pela exaltação mental. É por isso que
escolhi a minha profissão específica, ou melhor, criei-a, pois sou o único no
mundo.
̶ ...
Permite-me perguntar se tem agora alguma investigação profissional em
andamento?
̶ Nenhuma. Daí a cocaína. Não consigo viver
sem trabalho intelectual. Para que mais vale a pena viver? Olhe pela janela. Já
houve um mundo tão enfadonho, horrível e inútil? Veja como o nevoeiro amarelo
rodopia rua abaixo entre as casas encardidas. O que poderia ser mais
irremediavelmente prosaico e material? Qual é a vantagem de ter capacidades,
doutor, quando não se tem campo para aplicá-las? O crime é lugar-comum, a
existência é lugar-comum, e somente as qualidades que são lugares-comuns têm
alguma função sobre a terra.
Em
resposta às perguntas de Watson sobre como o detetive poderia ter sido
beneficiado pela conclusão bem-sucedida da saga O signo dos quatro, descobrimos que, nas últimas linhas do livro, Holmes está de volta ao
ponto em que a aventura teve início:
̶ Essa divisão não me parece justa ̶ observei. ̶ Você fez todo o trabalho no caso. Eu ganhei uma esposa, Jones ganhou o
mérito; diga-me, o que resta para você?
̶ Para mim ̶ disse Sherlock Holmes, ̶ ainda resta o frasco de cocaína. ̶ E esticou
a longa mão branca para apanhá-lo.
Texto extraído do livro Freud e a Cocaína