RIO - Drinque mais famoso do Brasil, a caipirinha tem paternidade indeterminada e desperta paixões quanto à sua criação. Até hoje, duas correntes principais se dividiam quanto à invenção da célebre bebida. Enquanto uma sustenta que o feito é responsabilidade dos escravos, outra diz que ela era usada como remédio no interior do estado de São Paulo durante o surto de gripe espanhola em 1918. Porém, uma nova hipótese está sendo levantada por um historiador do interior do Rio.
Para Diuner Melo, Paraty — uma das maiores produtoras de cachaça dos séculos XVII e XVIII — é responsável pela criação. Ele encontrou uma receita da bebida em um documento de 1856 no arquivo público da cidade fluminense. Para o especialista, é o registro mais antigo a citar todos os ingredientes juntos. E Melo desafia: que outras fórmulas, anteriores, sejam mostradas.
— A cachaça com limão sempre foi usada no tratamento da gripe e de outro males. Porém, a cachaça com açúcar, limão e água, na falta de gelo, é uma invenção paratiense até que se prove o contrário. É um produto de Paraty até que seja encontrado em outra cidade um documento anterior a este, com a mesma receita — provoca.
A revelação está no segundo volume do "Roteiro documental do Acervo Público de Paraty", publicado pelo historiador em parceria com a colega Maria José Rameck. O documento encontrado é uma carta enviada à Câmara Municipal por João Pinto Gomes Lamego, engenheiro civil responsável pelas obras do cemitério da cidade. No texto, ele justifica o alto consumo de aguardente na obra com a epidemia de cólera na cidade.
Como a doença é transmitida pela água, ele achou prudente dar a bebida aos escravos: "A necessidade obrigou a dar essa ração de aguardente temperada com água, açúcar e limão, a fim de proibir que bebessem água simples", diz, no documento. O especialista Ricardo Luiz de Souza, contudo, acha que o drinque é anterior a essa data.
— Como sempre acontece com criações anônimas e coletivas, não é possível estabelecer uma data precisa para o surgimento dessa mistura. Se há algum documento que comprove ter ela sido feita já no século XVII eu desconheço, embora ache bastante provável seu caráter remoto — diz.
Professor do Centro Universitário de Sete Lagoas (MG), Souza publicou o artigo "Caipirinha, ou seja, cachaça, limão e açúcar: breve história de um relacionamento". Para ele, a bebida é responsabilidade dos escravos. Segundo o historiador, eles aproveitavam frutos menos nobres, como o limão, para temperar a aguardente.
— A mistura da cachaça com o limão apenas poderia ter sido promovida pelos escravos. Já a incorporação do açúcar à mistura, gerando a caipirinha, tal como a conhecemos hoje, é de paternidade reivindicada e duvidosa. Mas a base, sem a qual ela não existiria, é escrava e é anônima — sentencia.
Autor de "Cachaça, o mais brasileiro dos prazeres", Jairo Martins defende que a bebida também era usada como remédio no interior paulista durante o surto de gripe espanhola no início do século XX. Mas, para ele, o drinque só surgiu anos depois, com a valorização de intelectuais modernistas brasileiros.
— Esse relato de Paraty é interessante, e trata-se do uso de um destes remédios. Essa receita foi utilizada para curar a gripe espanhola, mas só veio a se consolidar como drinque na Semana de Arte Moderna de 1922. Em suma, prefiro dizer que a caipirinha evoluiu de um remédio para um drinque, que se consolidou como tal em 1922.
* Reportagem publicada no Globo a Mais
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