Ela tem um nariz arrebitado, mas isso não é
nada. Nariz arrebitado a gente resiste. Mas a ponta do nariz se mexe quando ela
fala, delegado. Isso quem resiste? Eu não. Nunca pude resistir a uma mulher que
quando fala a ponta do nariz sobe e desce. Muita gente nem nota. É preciso
prestar atenção, é preciso ser um obsessivo como eu.
O nariz mexe milímetros. Para
quem não está vidrado, não há movimento algum. Às vezes só se nota de
determinada posição, quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do
nariz se mexendo, meu Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente.
Uma vez ela reclamou, “Você sempre olha para a minha boca quando eu falo”. Não
era a boca, era a ponta do nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra
ela que era o nariz. Delegado, eu sou louco? Ela ia dizer que era mentira, que
seu nariz não mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer
mais.
Mas a culpa, delegado, não é
do nariz, não é dela e não é minha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é
uma coisa só, nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se
deduz o outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível
como eu, um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que
se emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na
ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar
um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição
condensada? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era outras.
A multiplicidade humana. É
isso. A tragédia é essa. Dois nunca são só dois, são 17 de cada lado. E quando
você pensa que conhece todos, aparece o 18º. Como eu podia adivinhar, vendo a
ponta do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o
Aurelião completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível?
Deveria ter desconfiado de
alguma coisa quando descobri que o celular dela tocava Wagner. Quem escolhe
Wagner para o seu telefone celular? Pode-se saber muita coisa sobre uma pessoa
pelo que ela escolhe para tocar quando soa o seu celular. Eu achei engraçado o
Wagner, ela um doce de mulher escolhendo o Wagner, mas na hora não dei maior
importância. Hoje sei que Wagner era um sinal. Um dos outros, das outras, que
ela tinha por dentro, escolheu o Wagner. Foi uma maneira de dizer que o nariz
arrebitado não era tudo, que eu não me enganasse com o seu jeitinho de falar,
com o apelido que ela me deu, “Guinguinha”, veja o senhor, “Guinguinha”, que só
depois eu descobri era o nome de um cachorro que ela teve quando era pequena e
morreu atropelado, “Guinguinha”, delegado.
Foi uma maneira de dizer que
uma das que ela tinha por dentro era uma Valquíria indomável de dois metros, e
que se considerava de uma raça superior. Como, delegado? Fagner, não. Wagner.
Aquele alemão. Tudo bem, eu também tenho outros por dentro. Por exemplo: nós já
estávamos juntos um tempão quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio
Santos. Sou um bom imitador, o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte
passável, mas ninguém sabe, é um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse
“Eu não sabia que você era artista”. Ela também não sabia que eu tenho pânico
de berinjela. Não é só não gostar, é pânico mesmo, na primeira vez que ela
serviu berinjela eu saí correndo da mesa, ela atrás gritando “Guinguinha, o que
foi?”. Também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa da nossa
briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria é que a
gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras ficam lá
dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo, ressentidas. E,
vez que outra, querendo aparecer.
Tudo bem, viver juntos é ir
descobrindo o que cada um tem por dentro, os 17 outros de cada um, e aprendendo
a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus 17 pode não combinar com um
dos 17 dela, então a gente cuida para eles nunca se encontrarem. A felicidade é
sempre uma acomodação. Eu estava disposto a conviver com ela e suas 17 outras,
a desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela fala.
Mas aí surgiu a 18ª ela. Nós estávamos discutindo as minhas obsessões. Ela
estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a discussão derivou
para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obcecante” eram a mesma coisa,
ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase iguais e ela disse “Rará”,
depois disse que “obcecante” era com “c” depois do “b”, eu disse que não, que
também era com “s”, fomos consultar o dicionário e ela estava certa, e aí ela
deu outra risada ainda mais debochada e eu não me aguentei e o Aurelião voou.
Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela. A gente aguenta tudo, não é
delegado, menos elas quererem saber mais do que a gente.
Arrogância intelectual, não.
(sempre ele: texto de Luís Fernando Veríssimo)
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