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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O AINDA DESCONHECIDO DOSTOIÉVSKI E SEUS 200 ANOS DE NASCIMENTO


Professor João Armando Nicotti (*) analisa alguns contos, não tão populares do escritor russo, cujo bicentenário é lembrado neste mês.

    Mesmo o leitor dostoievskiano corre o risco de ignorar o “ainda desconhecido” Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski aqui apresentado. Claro que, como qualquer especulação, há erro possível, mas listo alguns títulos que, em regra, podem ser desconhecidos ou deixados num segundo plano. Há mais outros tantos, considerando contos iniciais do final do decênio de 1840, como “Romance em nove cartas”, “Polzunkov”, “O ladrão honesto”, “Um coração fraco”, “A mulher de outro e o marido debaixo da cama”, “Uma árvore de natal e um casamento”, “Uma história desagradável” (1882), o folhetim “Sonhos de Petersburgo em verso e prosa” (1871), etc.


    Dostoiévski nasce em Moscou e morre em São Petersburgo segundo o calendário juliano, ou seja, 30 de outubro de 1821 e morre em 28 de janeiro de 1881. Valem como efemérides os anos de 1821 e 1881 para este evento de 2021; 200 anos de seu nascimento (e, apenas enquanto notícia, - 140 de sua morte.


    Quem já não passou pelos títulos “Escritos da casa morta”, “Memórias do subsolo”, “Crime e castigo”, “Um jogador”, “O eterno marido”, “Os demônios” e “Os irmãos Karamazov” e deixou de se emocionar ou protestar com a gama de possibilidades de interpretações psicossociais de um mundo russo do século XIX que, ultrapassando seus próprios limites, atestam a universalidade de comportamento metafísico, moral, religioso, socioeconômico e psicológico?


    Mas vamos ao Dostoiévski possivelmente “ainda desconhecido”.


    “O senhor Prokhartchin” (1846), da produção da primeira fase do autor. Com um ritmo narrativo trancado e com ideias desrticuladas, Siemion Prokhartchin descola-se da realidade como sujeito que se deixa ficar no local que habita atrás de um biombo. Um baú enigmático embaixo de sua cama (que intriga a senhoria Ustínia e os demais inquilinos) e o estranhamento de sua conduta levam seus pares a crerem num infortúnio de vida somado à extravagância e atitudes e aproximação com sujeitos suspeitos. Ironia, conflito e isolamento fortalecem a avareza e o egoísmo de Prokhartchin denunciados pela pretensa pobreza. O social e o psicológico estimulam o medo de um homem que se aniquila pela fantasmagoria da possível extinção de seu local de trabalho – uma repartição pública na Rússia. Não atendendo às expectativas de sociabilidade, Prokhartchin deixa o suspense de sua vida até o final do enredo, o qual se revela ambíguo.


    Em “Niétotchka Niezvânova”, a partir da expressão “Niet (Hel) – Não, em russo, certamente Dostoiévski quis designar pessoas abandonadas, referência biográfica à Niétotchka Niernânova, que se vê de casa em casa depois das mortes da mãe e do padrasto. Assim a própria Niétotchka narra sua vida pregressa até seus 15 anos. Provavelmente, Ana é mulher madura quando escreve suas confissões, tamanho o grau de discernimento ao vivido. A têmpera psicológica de Niétotchka passa, até evoluir positivamente por momentos de “crises nervosas” e “devaneios” sobre sua infância, sua pobreza, a figura enigmática do padrasto violinista, a morte da mãe, a fuga do padrasto, a adoção em casa do príncipe K., o luxo, sua educação, os negaceios com Kátia (ódio e paixão até a separação) e a sua nova estadia em casa de Aleksandra e Piotr. O romance é inacabado e parte de sua publicação ocorre no princípio de 1849, com o autor já preso na Fortaleza de Pedro e Paulo.


    O leitor de Dostoiévski sabe o quanto o autor desenvolve os seus escritos de maturidade, a presença das crianças e o quanto estas sofrem no mundo dos adultos. “Um pequeno herói” é de 1849, com publicação em 1857. O ponto de vista é o de um menino de 11 anos que, no tempo presente, torna-se o adulto de seu próprio mundo vivido no passado. Foi escrito quando o autor estava preso na Fortaleza Pedro e Paulo, sendo o modo que Dostoiévski encontra para suportar a adversidade do momento. Deste modo, há um pequeno grupo que apenas se diverte e que está distante dos problemas sociais da Rússia por investir na própria futilidade, não havendo espaço para mujiques esfomeados, mulheres enlouquecidas pela miséria, epilépticos e, tampouco, estudantes a perambular por ruas sombrias e inumanas para eliminar piolhos sociais. Neste contexto, aparece um garoto que desfruta da apoteose do prazer social a descobrir seu primeiro amor pela casada Madame M*. No final do enredo, vê-se a possibilidade de regeneração do mundo dos homens – ponto importante em futuras obras de Dostoiévski.


    Em “O sonho do titio” (1859), a discussão proposta por Dostoiévski é a tediosa província de Mordássov e seus moradores. Dostoiévski parte de um sonho que não é sonho, pois é colocado na cabeça do Titio (o príncipe K. ou Gavrila) algo como sonho para substituir a realidade tal como se apresenta (o pedido de casamento do príncipe à Zinaída). O Titio não é tio legítimo do sobrinho impostor Pável. A estrutura familiar apoiada na figura do Titio não é o centro da discussão, mas sim, na de dois personagens: Mária e Pável, deixando a figura do próprio Titio em segundo plano, embora destaque-se a sua comicidade.


    Diferente é o título “A aldeia de Stepántchikov e seus habitantes" (1859), pois, nesse texto, a ideia central é, de fato, a família e não a aldeia sugerida. Cada habitante surge de dentro da casa de Iegor, como saindo sem muita pretensão, meio sem querer, até desvendar-se por meio das falas e dos comportamentos estranhos associados a conchavos e à luta por espaços na aldeia – casa de Iegor. O parasitismo, a hipocrisia e o humor formam a trama. O que o leitor espera basicamente não ocorre, pois o social da aldeia é diminuído e o emblemático conflito fica entre quatro paredes. O movimento de atração é a casa e Iegor Rostániev e o movimento é de “fora para dentro”, enquanto que, em “O sonho de Titio”, pode-se imaginar como de “dentro para fora”. Figura impagável de influência e comicidade é a de Fomá Fomitch, agregado de Iegor, personagem admirado pelo escritor argentino Julio Cortázar (1914 – 1984).


    Em “Notas de inverno sobre impressões de verão” (1862/1863), o narrador é um doente, sofre do fígado, sabe que mentirá e vê no espelho sua língua amarela e maligna. Notas está no caderno de notas que o narrador consulta para recuperar sua viagem ao ocidente, durante dois meses e meio, ao visitar Berlim, Dressen, Wiesbaden, Baden-Baden, Colônia, Paris, Londres, Lucerna, Genebra, Gênova, Florença, Milão, Veneza e Viena. Sobre a Europa, tece comentários sobre progresso, socialismo, mulheres, casamento, miséria, mentiras, etc. O que perpassa Notas é o pensamento que o russo não abre mão de sua base moral, por ter noção que esta pode ser delinquida, enquanto que o europeu toma o mal pelo bem. Destaque para “Ensaio sobre o burguês” e suas reflexões sobre o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e o temor do burguês resumir-se ao fato de ter alcançado tudo e perder tudo, pois quem mais teme é quem mais prospera. Segundo o narrador, somente na Rússia existe esta relação de consciência entre indivíduo e comunidade: só os russos são capazes de fraternidade.


    O enredo de “O crocodilo” (1864) é construído com presteza, pois Dostoiévski acrescenta, ao fantástico, o estranhamento do capitalismo que divide opiniões, causa desconforto e dúvida. O capitalismo é personagem e a metáfora em Carlinhos, o crocodilo, implacável. O que o rege é o “princípio econômico em primeiro lugar” e a “atração de capitais estrangeiros”. Deste modo, o crocodilo valoriza Ivan Matviéitch ao engoli-lo e este sente destacado, pois, paradoxalmente, dentro do animal, há o vazio. Incompleto e desumano, o crocodilo/capitalista é defendido por jornais, ressonância do que ocorre na Rússia pós abolição dos servos em 1861. A arrogância de Ivan é proporcional ao destaque que o crocodilo lhe permite, ou seja, o de pertencer ao sistema capitalista.


    Nessa linha do fantástico, há o conto “Bobók” (1873). Estruturado com o narrador Ivan Ivanovitch e sua relação rápida com retratista, editores, parente morto e grupo de mortos que se fazem escutar quando ele, Ivan, distraído, dormia em cima de sepultura. Em nível dos mortos, há diferentes classes sociais da Rússia do século XIX, predominando, entretanto, a abastada, pois entre os mortos há apenas um verdadeiro. Desta conversa, Ivan serve-se como crítica à classe rica deteriorada moralmente, em situação similar quando do odor do morto; no conto, o fedor é a moral construída em vida. O resto de vida que há nos mortos é apenas a consciência.


    A novela “O sonho de um homem ridículo” (1877) apresenta solilóquio em torno dos pensamentos imaginários do protagonista-narrador-suicida (pois se mata em sonho). Sua relação com outros personagens é de apatia e indiferença até, ao menos à descrição do sonho, quando o narrador vive com homens felizes numa espécie de Idade de Ouro. No fim do relato, retoma-se a descrição e a reflexão fora do sonho, mas com a convicção deste sonho para a construção digna da humanidade. O protagonista deixa a indiferença para crer num estado de transformação dos homens. Sua convicção, após ter visto a Verdade, é a de pregar pelo mundo, apesar da descrença dos homens e de suas relações apoiadas pela razão. O tom profético e religioso torna possível de o homem ter uma vida harmônica e repleta de amor e consideração pelo outro, removendo o egoísmo, o ciúme, a falta de solidariedade e a patifaria e canalhice do conhecimento da racionalidade.


    No ano de comemorações e, decerto, de atualização da obra de Dostoiévski, ainda há muita leitura do conjunto da obra do autor russo a ser preenchida. O ideal, entretanto, é discuti-lo sempre que nossa ansiedade por leituras e traduções novas e inteligentes, como a recente “Crônicas de Petersburgo” (tradução de Fátima Bianchi) estejam capazes de oportunizar a sagaz cidade do texto do autor de “Os demônios” e se deparar com o raciocínio de Kapiton Maksimovitch: “...de um modo geral observei que de dia se perde um pouco a fé”.


Publicado no Caderno de Sábado

do Jornal Correio do Povo

em 6 de novembro de 2021


(*) Professor de Literatura Brasileira. 
Curso de Extensão em Língua Russa pela UFRGS.




2 comentários:

  1. Ótima resenha das obras de fato menos conhecidas (do grande público) do gênio bicentenário russo. "O senhor Prokhartchin" foi objeto da tese de doutoramento de Boris Schneiderman e é muito conhecida nos meios acadêmicos. Gostei muito da sua reesenha. Parabéns!


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    Respostas
    1. Muito obrigado, Paulo!!!
      Mas os créditos todos devo transferir a quem de direito. Ao autor do artigo,
      meu primo, professor e mestre em Literatura Russa, João Armando Nicotti.
      Agradeço a leitura e participação em meu blog.
      Abs

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